Numa cidade longe de ser uma metróploe, longe até mesmo de ser considerada rural ou do campo, a figura mais ilustre do lugar, beirando seus 80 anos, com muita dificuldade, e antes que amanhecesse, montou uma banca dessas que as pessoas montam prá vender revistas, objetos de decoração, rendas, artesanato, e outras coisas do tipo.
Montou com muita dificuldade, devido seu cansaço da vida, sua idade avançada, seus ossos fracos.
Em meio a ais, uis, paradas prá descanso, mas sempre sorrindo, o senhor, após algum tempo considerável, terminou de montar.
No anúncio dizia: BAZAR
O sol, que há pouco nascera, anunciou o início da vida na cidade.
O senhor sentou-se atrás da banca, abriu um sorriso maior, e começou a cantarolar cantigas que aprendera com sua mãe quando criança.
Ninguém até então, havia parado em sua banca. Estava com as pálpebras semicerradas, como se estivesse a adormecer, ao que veio a pergunta:
- Tem preço não? - perguntou a garotinha.
- Tem não - respondeu o velho.
- E esse? Tem preço não?
- Tem não.
- E aquele? Tem preço não?
- Não.
- Ah, seu lelé da cuca - mostrou a língua e saiu correndo atrás das amiguinhas.
O velho continuou a cantarolar sem se mostrar ofendido. Mas logo foi interpelado novamente:
- Tem preço não? - perguntou um rapaz.
- Tem não - respondeu o velho.
- E vai vendê como?
- Num vô.
- Mas é bazar, num é?
- É sim, moço. Vai querê?
- E num tem preço não?
- Não.
- Ah seu véio doido - fechou a cara e foi embora.
O velhou entristeceu-se um pouco. Sua intenção era das melhores. E pouco se importavam com seu bazar. Começou a cantarolar cantigas tristes de sua juventude. Cantigas que aprendera com amigos. Elas falavam sobre donzelas impossíveis de serem conquistadas. Em uma das canções foi interrompido pela voz grave, voz de galã de novela.
- Quanto custa? - perguntou o rapaz bem vestido, com ares de importância.
- Num tem preço não sinhô.
- Não faz sentido. Isto é um bazar, o senhor tem que colocar os preços.
- Mas não carece de preço não sinhô.
- Acho que o senhor não compreendeu. Em um bazar as coisas tem preços. As pessoas compram - e engajou em toda sua teoria e discurso sobre lei da oferta e da procura, vomitando sobre o velho palavras e mais palavras.
O velho não deu atenção. O galã falou, falou, falou e se foi.
Mais triste ainda, o velho olhou ao redor. Pensou em como a vida escorre entre os dedos, em sua infância, em sua adolescência. E não lembrou de mais nenhuma canção. Lembrou-se de suas preocupações. Lembrou-se de sua infelicidade de seu amor não correspondido. Lembrou-se de Mercedes e toda sua beleza inigualável. Lembrou-se em quanto a amou. Lembrou-se de muito mais.
- Ei, to falando cum sinhô. É surdo é? - gritou uma senhora gorda, com uma bacia de roupas na cabeça.
- Sô surdo não sinhora.
- Escuta, se o sinhô num for surdo mesmo. Escuta, tem preço não é? Coisa esquisita.
- Tem não sinhora. Tem não.
- Mas como é que pode?
- Sei não se pode ou se num pode. Tem que podê?
E ao que velho perguntou, a mulher calou-se. Achou que o velho fosse louco, doente, ou mal educado. Virou-se e seguiu seu caminho rumo as pedras do rio. Era a lavadeira da cidade. O velho a acompanhou com os olhos, e ela ia diminuindo, diminuindo, quanto mais longe, menor ela ficava, ao passo que suas lembranças iam aumentando, aumentando, e Mercedes novamente atracou em sua mente.
Mercedes era filha de família tradicional. Não fez muitas escolhas. Nem seu casamento. Seu pai a casou com o filho de um coronel amigo da família. Após o casamento, Mercedes e o marido foram morar na cidade grande, e o velho nunca mais a viu.
Ao lembrar-se da imagem de Mercedes indo embora, emocionou-se. Nunca pode dizer o quanto a amava. Nunca. E ficou atrás de sua banca, encarando o nada, lembrando de Mercedes.
- O sinhô tá bem?
- Tô sim sinhora.
- Num parece não.
E a senhora que estava a sua frente fixou nele seu olhar. O velho parecia ter entrado em transe. Em sua mente veio as lembranças de sua vida solitária, sem Mercedes. Lembrou de quando, mesmo sem ter vindo de família tradicional, arrumou sem primeiro emprego como ajudante em uma farmácia. Mercedes não estava lá. Lembrou-se de quando, com suas economias, após anos de estudo recebeu seu diploma de médico. Mercedes não estava lá. Lembrou-se de como tornou-se a figura ilustre de sua cidade, como o médico da região. Mercedes não estava lá. Mercedes não havia visto nada. Mercedes era um fantasma.
O velhou saiu do transe. Levantou seus olhos cansados, anuvidos e sem brilho, que o tempo e a vida levaram embora. Viu que a mulher continuava a sua frente.
- Olha, meu sinhô. Eu quero isso e isso aqui também.
- A sinhora não quer mais nada?
- Hum. Essa aqui também.
- Eu tenho mais aqui. Si a sinhora quiser, eu te mostro.
- Gradecida. Gostaria sim.
O velho mostrou tudo o que tinha.
- Eu quero tudo - disse a senhora.
O velho sorriu. E como a senhora à sua frente não perguntava em nenhum momento se tinha preço, o velho não se conteve e perguntou:
- Mas por que a sinhora se interessô tanto nisso tudo?
-Por que essa moça em todos esses retratos que o sinhô qué vendê, sô eu.
O velho sorriu. Mercedes tomou-lhe as mãos. Queria falar-lhe. Queria dizer tantas coisas e n]ao sabia por onde começar. O velho sorriu mais, e suas pálpebras foram caindo. Uma lágrima escorreu pelo canto do olho, e o velho caiu. O velho morreu.
Mercedes ainda beijara-lhe os lábios, mas o velho não sentiu. Estava morto. A senhora recolheu todas as lembranças que o velho havia deixado no bazar. Lembranças que não tinham preço. Tudo o que o velho queria era que alguém as mantessem vivas, que as lembranças vencessem o tempo. Não entendia que para as pessoas, eram apenas fotos, apenas retratos. Suas lembranças eram importantes apenas à ele, e à Mercedes. Mas morreu com a certeza de que alguém as manteria vivas. E este alguém, era a senhora que não botou preço em um sentimento.
19/06/2008
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