18/03/2020

A dor que sente

Ela não sabia mais se sentia dores ou se as dores a sentiam. Não se lembrava da última vez que esteve em estado diferente do atual ou se tudo sempre foi assim. Suas lembranças eram verdadeiras incógnitas, assim como ela própria se sentia na sua relação com o mundo e do mundo com ela.
Era o avesso invertido do avesso, enroscada em pensamentos insistentes, ideias mancas e vontades lavadas de sangue. Quem a via, não a enxergava, e pela multidão ela passava solitária. Quem consegue ser sozinho no meio de tanta gente e ainda sorrir? Exercita a musculatura: sobe uma bochecha, sobe a outra bochecha e taí o sorriso. Ela não esquece de apertar os olhinhos, pois aí não vão dizer que seu sorriso é "amarelo" já que seus olhos estão sorrindo juntos.
Diplomacia com os outros é como engolir pedras: a saliva fica grossa, mas ela não cospe na cara da gentil pessoa que vomita frases prontas embaladas com papel decorado e laço lilás, ah não. Ela aceita cada um desses presentes, e pela diplomacia engole a saliva grossa feito pedra, que desce como gilete pela sua garganta, que além de levar o gosto de sangue a sua boca, aperta suas cordas vocais, e estrangula aquela voz de raiva pronta pra sair e que fica presa, pendurada nos dentes, e que ali morre.
Ela não sabia mais se sentia dores ou se as dores a sentiam. E seguiu sendo uma perdida numa multidão de outros uns, de outros outros.


Texto: Diego Lana
Arte: Daniela Nunes

[DES] Importantíssimo eu

Cresceu desimportante num universo de muitas importâncias. Tudo era importante, urgente, imediato, na pressa, no "sangue, suor e lágrimas". Cresceu desimportante dando importância demais para tudo, sem segregação, sem divisão, sem priorização, sem categorização, sem motivação, sem ação de qualquer outra pessoa ao seu redor, a não ser o movimento dentro de si que engatilhava sua ignição.
Cresceu desimportante numa casa cheia de importâncias dadas aos objetos, aos móveis, às regras, às metas e ao seu silêncio. Cresceu desimportante dando importância às notas, e não ao prazer em aprender, dando importância ao professor, e não ao aprendizado, dando importância ao horário de entrada e saída, mas nunca às pausas entre aulas. Não desligava, era importante estar ativo.
Cresceu desimportante numa relação de muitas importâncias vazias. O tio bêbado, o vizinho gênio, o primo pegador, a professora mentirosa... eram todos muito importantes. Eram exemplos. Cresceu desimportante e não aprendeu o que é a desimportância.
Cresceu.
Cresceu e não aprendeu.
Cresceu, e no encontrar-se se perdeu.
Cresceu, e no relacionar-se com outros se apagou.
Cresceu, e o crescimento o levou a um grau de desimportância tão grande, que despencou do alto de uma desimportância.

Caiu na insignificância de si, num universo escuro, de portas trancas e chaves erradas. Não recebe respeito, não recebe contato, não recebe olhares, não recebe atenção. Caiu na insignificância consciente de que a resiliência neste caso não leva a resistência alguma. 
Caiu na insignificância. E não há significado que ajude a sair deste quarto escuro.

Não há 
        v i d a 
                   para quem nasceu 
                                                 m
                                                o
                                               r
                                              t
                                            o  a
.

A simulação real do universo imaginário e presente

  Era um poeta dos sonhos e um pintor das reflexões mais profundas. Sua mente transbordava de ideias surreais, mergulhadas em um mar de dúvi...