03/12/2020

Realidade Odiada

No meio de tanta fumaça ela viu olhos vermelhos por todo o lado. Seriam os olhos dos outros vermelhos ou seria ela com sangue nos olhos vendo tudo em vermelho?
No meio de tanta fumaça, ela levitou, revirou, deu um salto mortal, inspirou, segurou, soprou e passou. 
No meio de tanta fumaça já não sabia se estava deitada ou em pé, talvez sentada, ou talvez nunca nem esteve ali...
No meio de tanta fumaça, já não sabia quem era Eva e quem não. Ela queria contar a Eva sobre Lilith. 
No meio de tanta fumaça, ela esteve em Saturno, Marte e Mercúrio, e em lugar nenhum ao mesmo tempo. Tempo?
No meio de tanta fumaça, os homens chegaram de sirene ligada, cacete na mão e muita sede, muita sede de sangue. 
Sem mais tanta fumaça, o imundo a algemou, enfiou a mão pelo seu short, e a jogou no camburão. 
Hoje ela sente falta de fumaça, onde podia enxergar um mundo mais bonito. Sem fumaça, é só realidade (odiada). 

29/09/2020

A última apresentação

Quem diria que nessa altura da vida eu estadia num palco. Mas, qual o assombro?
Ao longo da vida desempenhei tantos papeis que não é nenhuma novidade. Me formei ator numa famosa escola chamada Sofrimento.
Dos diversos papeis, o mais marcante talvez tenha sido numa peça chamada infância, na qual as outras personagens diminuíam, provocavam, maltratavam e espancam a minha personagem. Foi tão marcante, que eu jurei nunca mais interpretar algo semelhante. Até hoje lembro das falas e dos sentimentos evocados. 
Agora estou neste palco, diante de vocês para interpretar um novo papel: o da decadência humana. 
Seja na minha pele flácida, que esconde minhas dores e tristezas entre as rugas, seja na minha barba branca, que brilha toda minha amargura (mas o que importa é o brilho resplandecente), seja na minha falta de força nas pernas, que já não sustentam todo o sofrimento que carrego nos ombros. 
Conte comigo. Eu sou perfeito pra este papel tão autobiográfico. 

02/09/2020

Segurança em pó

Veio puxar conversa com essa frase: a segurança é perigosa. 
Olhei nos olhos secos e brancos, interessado pelo assunto que me tomou no susto. 

"A segurança é perigosa, meu amigo. Te faz ter certeza do que nunca foi certo e nunca será. O cuidado se descuida, e o calor se torna insuportável. 
A segurança é perigosa, meu amigo. Os ouvidos se fecham, e a voz desinteressa. Não adianta gritar para ouvidos que decidiram ser boca. O grito é inaudível. Você ouve?
A segurança é perigosa, meu amigo. O interesse em ser vira o interesse em ter, e o controle rompe a compaixão. Qual a distância entre existir e partir?
A segurança é perigosa, meu amigo. Se você não tem medo, você não enxerga, não se atenta. E quando ficar cego, será tarde. O que foi não volta mais."

E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, já era tarde demais. 

30/08/2020

Ciranda da vida

Era mais simples. 
Era mais humano.
Era mais real. 
A infância é vital. 
Crescer é uma cilada. 
Envelhecer é uma mentira.
Da beleza da vida, só ruínas.
E no desmonte do cenário improvisado 
A nudez da alma é feia, suja e desimportante. 
O que é a vida senão uma danação?

23/08/2020

Bailarina num copo de whisky com café

Foram muitos anos dividindo o palco com aquele - não ousava dizer o nome - que não sabia dividir. O combinado era colaboração e não exploração, mas não foi o que viveu. 
O espetáculo era lindo de se ver, mas não de se viver: estava sempre em segundo plano. Ao final, era whiskey pra esquecer, e no dia seguinte café pra acordar. Até quando? 
Até quando?
Até nunca. 
Decidiu que o bailarino voaria pra fora do palco: um assemblé, três balloné e um jeté bem executados por ele seria o suficiente. 
Viu-se sozinha no palco. Finalmente era dona de si, de tudo e de todos. Valsaria, se quisesse. Sambaria de sapatilhas se quisesse. Fouetté rond de jambe en tournant o quanto quisesse, pelo tempo que quisesse. No fim, whiskey pra dormir e café pra acordar. 
Tanto tempo fora do protagonismo, que no fim lhe restou um copo e duas garrafas.
Para si, apenas a morte do cisne. 

Texto: Diego Lana
Arte: Daniela Nunes 

20/08/2020

Cinzas

Soprou pro alto o que restava de sua energia vital. Queimou na ponta do cigarro pra ver em forma de fumaça o sorriso da sua alma. No fundo do copo afogou sua dignidade. 

Para que serve a vida senão para morrer? 

Ainda mais ele que nem pra morrer tinha dom. Costumava dizer que seu dom era poder furtar-se à sua responsabilidade de ter um, mesmo que essa contradição gritasse qual era o seu maior dom: negar o que não pode ser negado, na contramão da obscurantismo que é a vida.

E como cinza de bituca, num canto de calçada sobre a tampa de um bueiro, misturou-se ao pó e para o início retornou. 

[Não] está tudo bem [?]

Quem via sua cabeça erguida, seus olhos espertos, sua sobrancelha espremida, a testa franzida e seu peito cheio de ar, não imaginava que tudo era cartaz! 
A coroa pendendo para a lateral, mas firme e bem repousada sobre sua cabeça. 
Quem não queria ter a mesma postura? Sem contar a altivez de quem pode voar e ver o mundo lá do alto, lá de cima, numa imensidão azul e tranquila. 

O voo solitário não é privilégio. 
O olhar lá de cima não é privilégio. 
A imensidão azul não é privilégio. 

Privilégio é compreender o que se passa com a alma do ser. 
É ter empatia e perceber que aquela olhos negros eram espertos para compreender o que acontece lá embaixo, com as pessoas com seus pés no chão e cabeças nas nuvens, mas não espertos o bastante para esconder uma lágrima de dor. 

Olhos de insônia. 

Texto: Diego Lana
Arte: Daniela Nunes 

21/05/2020

Não respire

Foram tantos momentos na vida em que prendeu a respiração, que quando pediram para não respirar mais, nem sentiu. Hábito, dizia. Hábito, sentia. Hábito.
Hábitos que constroem, modificação ou causam a ruína de tudo. O perigo do hábito que causava cegueira e surdez.
Pelo hábito, não respirar já era comum. E quando tentou respirar, sentiou dor, tonteou e morreu, mas daquelas mortes que a pessoa ainda caminha, mas sem futuro, que ainda tem olhos, mas que nada vê, e que ainda é provida de fala, mesmo que a inutilize por conta própria.
E seguiu vivendo de morte.

18/03/2020

A dor que sente

Ela não sabia mais se sentia dores ou se as dores a sentiam. Não se lembrava da última vez que esteve em estado diferente do atual ou se tudo sempre foi assim. Suas lembranças eram verdadeiras incógnitas, assim como ela própria se sentia na sua relação com o mundo e do mundo com ela.
Era o avesso invertido do avesso, enroscada em pensamentos insistentes, ideias mancas e vontades lavadas de sangue. Quem a via, não a enxergava, e pela multidão ela passava solitária. Quem consegue ser sozinho no meio de tanta gente e ainda sorrir? Exercita a musculatura: sobe uma bochecha, sobe a outra bochecha e taí o sorriso. Ela não esquece de apertar os olhinhos, pois aí não vão dizer que seu sorriso é "amarelo" já que seus olhos estão sorrindo juntos.
Diplomacia com os outros é como engolir pedras: a saliva fica grossa, mas ela não cospe na cara da gentil pessoa que vomita frases prontas embaladas com papel decorado e laço lilás, ah não. Ela aceita cada um desses presentes, e pela diplomacia engole a saliva grossa feito pedra, que desce como gilete pela sua garganta, que além de levar o gosto de sangue a sua boca, aperta suas cordas vocais, e estrangula aquela voz de raiva pronta pra sair e que fica presa, pendurada nos dentes, e que ali morre.
Ela não sabia mais se sentia dores ou se as dores a sentiam. E seguiu sendo uma perdida numa multidão de outros uns, de outros outros.


Texto: Diego Lana
Arte: Daniela Nunes

[DES] Importantíssimo eu

Cresceu desimportante num universo de muitas importâncias. Tudo era importante, urgente, imediato, na pressa, no "sangue, suor e lágrimas". Cresceu desimportante dando importância demais para tudo, sem segregação, sem divisão, sem priorização, sem categorização, sem motivação, sem ação de qualquer outra pessoa ao seu redor, a não ser o movimento dentro de si que engatilhava sua ignição.
Cresceu desimportante numa casa cheia de importâncias dadas aos objetos, aos móveis, às regras, às metas e ao seu silêncio. Cresceu desimportante dando importância às notas, e não ao prazer em aprender, dando importância ao professor, e não ao aprendizado, dando importância ao horário de entrada e saída, mas nunca às pausas entre aulas. Não desligava, era importante estar ativo.
Cresceu desimportante numa relação de muitas importâncias vazias. O tio bêbado, o vizinho gênio, o primo pegador, a professora mentirosa... eram todos muito importantes. Eram exemplos. Cresceu desimportante e não aprendeu o que é a desimportância.
Cresceu.
Cresceu e não aprendeu.
Cresceu, e no encontrar-se se perdeu.
Cresceu, e no relacionar-se com outros se apagou.
Cresceu, e o crescimento o levou a um grau de desimportância tão grande, que despencou do alto de uma desimportância.

Caiu na insignificância de si, num universo escuro, de portas trancas e chaves erradas. Não recebe respeito, não recebe contato, não recebe olhares, não recebe atenção. Caiu na insignificância consciente de que a resiliência neste caso não leva a resistência alguma. 
Caiu na insignificância. E não há significado que ajude a sair deste quarto escuro.

Não há 
        v i d a 
                   para quem nasceu 
                                                 m
                                                o
                                               r
                                              t
                                            o  a
.

A simulação real do universo imaginário e presente

  Era um poeta dos sonhos e um pintor das reflexões mais profundas. Sua mente transbordava de ideias surreais, mergulhadas em um mar de dúvi...