30/07/2009

AMOR AMORTE MORTE

Correu do portão de sua casa até o viaduto no centro da cidade. Correu sem parar e sem olhar para trás. As lágrimas que caíam não marcavam o caminho de volta. Nas suas mãos carregava a tristeza, a mágoa, a vergonha, o medo e a religião. Sobre seus ombros pesavam os bons costumems e a família perfeita.
Correu o mais rápido que pode, como nunca tinha corrido antes nos seus 17 anos de vida. Não tinha objetivo, não tinha rumo, não tinha orientação. Parou no viaduto, simplesmente. Olhou para baixo e ficou tonto com o vai e vem de carros.
Sua cabeça parecia rodar. Estava bêbado de incertezas e culpas, dele e da família. Não entendia a razão de tantos sentimentos cravados em seu peito, sentimentos tão diversos e opostos. Qual era o erro de amar?
Olhava o vai e vem dos carros, e via na rua iluminada pelos faróis dos veículos o rosto do Leo. Fechava os olhos tentando tirar essa imagem da cabeça, mas não conseguia. Tentava se concentrar no que sua mãe dizia, as frases da bíliba, que não poderia se deitar com outro homem, pois é abominação aos olhos de Deus, e a punição seria certa. Mas qual punição haveria em amar?
Sobre sua cabeça a noite sem lua, sem estrelas, sem beleza. Abaixo o vai e vem dos carros. E em sua cabeça deu prá maldizer Deus, a família, Leo, e a si. Riu pelos momentos bons em que soube o que era amar, e chorou pela culpa por ter amado um homem. E num mesmo instante, as lágrimas de alegria e tristeza embaralhavam-se em seu rosto.
E sem obter respostas, nem auxílio, entregou-se à noite escura interrompendo o vai e vem dos carros...

Qual o pecado em amar?

29/07/2009

Cadáver-irmão

Tudo o que ele não queria era ter sujado sua camisa de sangue. "Vai dar trabalho prá limpar isso daqui" dizia para si mesmo enquanto fitava o cadáver-irmão no chão. Não tinha se arrependido de ter matado quem é sangue do seu próprio sangue, na verdade sentia-se aliviado. Mas a camisa manchada de sangue realmente o incomodava. A camisa que havia custado tão caro.
Não tinha realmente a intenção de matar. "Eu queria apenas dar um susto, dar uma lição" pensava, "mas ele pediu por isso, eu senti." Mas o cadáver estava lá, calado, imóvel, com os olhos abertos sem brilho, fixos no infinito, como se observasse através de seu assasino-irmão. O sangue escorria da cabeça, tingindo o tapete de um vermelho escuro.
Não pensava em limpar aquela sujeira, porque não era isso que importava. Dinheiro nenhum nesse mundo pagaria a sua felicidade em ver o irmão estirado no chão. Daqui prá frente não ouviria mais os insultos gratuitos nem aquela voz cheia de rudeza, não veria mais aquele ser carregado de rudeza e preconceito, não seria mais alvo de investidas maldosas de um irmão ciumento.
A verdade é que nunca entendeu as razões que levaram seu próprio irmão a tal comportamento. Não entendia como todo esse conjunto de coisas ruíns cabiam dentro daquele ser que era do mesmo sangue que o seu. Não adiantava investigar, nem perguntar. A maldade era lançada gratuitamente em cada palavra, em cada gesto, em cada movimento do seu irmão.
Agora tudo estava resolvido. Sentia-se ótimo em ter um cadáver-irmão. Era tudo o que sempre sonhou...

27/07/2009

5 suspiros

Saiu do trabalho as 5:00 da tarde. Esgotado de tanto resolver pepinos, quebrar galhos, descascar abacaxis, e dar um jeitinho bem brasileiro aqui e alí, dizia para si mesmo que estava no emprego certo. Seu único problema era voltar prá casa.
Entrou na Potranca, nome do seu carro ano 92. Apesar do ferrugem aqui, do ferrugem alí, a Potranca andava, balançava, mas andava. Sai do estacionamento, deu boa tarde para o menino que anota as placas dos carros que entram e que saem. O rapaz estava sempre com a bíblia embaixo do braço, mas nunca foi visto lendo nada.
Quando dobrava a esquina da rua da sua casa, sentia um calor começando a subir pelas suas pernas. Todas as músicas que cantarolava no caminho entre o trabalho e sua casa sumiam nesse momento. Não havia um sorriso esboçado em seu rosto, nem o mais amarelo deles. Seu coração batia mais forte, como se fossem marteladas. O seu rosto exibia as rugas de toda sua vida, que só ficavam em evidencia quando descia do carro pronto prá entrar em casa.
Mas hoje deteve-se na porta. Enfiou a mão no bolso, tilintou as chaves com os dedos. Hesitou. Definitivamente não queria entrar. Não hoje. Recuou, deu a volta, e tentou olhar pela janela da sala. Houve um momento que sentiu-se como um ladrão, ou um espião, tentanto descobrir o movimento das pessoas da residência, para que mais tarde pudesse tirar algum proveito da situação.
Viu sua mulher passar, seguida pelo seu filho. O calor que havia sentido antes retornou ainda mais forte. Começou a suar e lembrar de tudo o que passara até então. De algum modo, a figura do filho o deixava inteiramente transtornado. Como poderia alguém tão parecido com ele fisicamente, com uma fisionomia tão semelhante ser tão bizarro?
Deixou a janela e voltou para o carro. A Potranca era seu refúgio, e guardava a solução definitiva para um problema sério que estava encarcerado em seu lar. Ficou alí remoendo toda sua mágoa, sua angústia, sua raiva e seu arrependimento. E junto a tudo isso, figurava a imagem do seu rebento de 22 anos.
O filho era um ser no mínimo inconveniente: turrão, teimoso e desagradável. Não se arrumava muito bem, tinha uma aparência deplorável: sujo, mal arrumado e com cabelos despenteados. Andava com uma calça jeans rasgada com lixa, e um tênis que um dia foi cinza e agora é preto. Seu vocabulário consistia de gírias. Não provocava ninguém, mas a sua presença era uma provocação. Não há quem não se incomodasse com o simples fato que ele poderia estar em algum lugar.
Saiu do carro munido do que resolveria sua vida. Deixou a Potranca estacionada na garagem como de costume, desceu do carro tranquilamente. O calor que havia subido pelas pernas já cozinhava seu cérebro e transformava seus olhos em duas bolas de fogo. Abriu a porta. Beijou a esposa. Olhou para o sofá. Gritou. Berrou. Atirou.
5 tiros, seguidos por 5 suspiros. Nenhuma lágrima escorreu. Beijou a esposa como há muito não fazia. Subiu as escadas em direção ao banheiro. Ligou a ducha e cantou, como há muito não cantava. Saiu do banho e foi se deitar.
Estava leve. Estava feliz. Estava completo.

25/07/2009

Releitura juvenil

Sinto falta dos meus amigos. Ultimamente, mais do que nunca, fico relembrando as viradas de noite no apê do Marquinhos. A Flávia e a Naná estavam sempre lá. O Daniel não ia sempre, mas quando ia o divertimento era garantido. Lembro que cogitávamos a possibilidade do Daniel ser gay e gostar do Marquinhos, mas a Flávia era a primeira a dizer que estávamos delirando, e que ela ainda iria beijar o Daniel.
A Naná sempre enchia a cara. Eu não dispensava a Vodka, e afirmava para todo mundo que eu sabia beber. Sim, eu sabia beber. Eu não ficava bêbado porque eu sabia beber. Mas a Naná... essa definitivamente era quem sabia beber. Pegava a garrafa e virava o litro, como se fosse uma frequentadora de boteco. Ninguém dava nada prá aquela baixinha, aquela tampinha, aquela bonequinha. Tudo nela era pequeno: as mãos, as perninhas, os olhos miúdos metidos atrás dos óculos, e uma boca que não combinava com a garrafa. Ah, mas nada disso impedia a Naná de entornar o litro.
O Marquinhos era o mais desperado. Estava sempre pedindo prá gente falar mais baixo por causa dos vizinhos chatos. Coitado do Marquinhos. Vez ou outra tinha que se explicar com a polícia. Os vizinhos dele eram muito perturbados. E sensíveis. S-e-n-s-í-v-e-i-s. Não é a toa que ele era o mais desesperado. Mas não queríamos nem saber. O que a gente queria mesmo era bater papo, beber, falar de teatro, de música, de livros... Não que o Marquinhos não gostasse, mas ele estava sempre mais preocupado em fazer a gente calar a boca do que no assunto.
O Daniel o defendia com unhas e dentes. "Pô gente, depois ninguém vai ajudar o Ma a pagar a multa do condomínio" dizia ele de tempos em tempos. Naná não perdoava e já dava seu palpite dizendo que o Daniel era um puxa saco do Marquinhos, que ele deveria é sentir alguma coisa pelo dono do apê. O Marquinhos ficava vermelho, e o Daniel desconversava. Até hoje não sei se rolou alguma coisa alí...
Sinto muita falta da galera. Sinto falta da maneira com que a Flávia defendia os atores circenses, dizendo que eles eram melhores do que os atores de teatro. Eu, na minha ingnorância do meio circense, dizia que não se podia comparar, não havia maneira de se comparar. Mas ela nçao dava trégua, acendia mais um cigarro e se metia a defender o circo.
E a noite ia, a madrugada vinha, e quando o dia rompia com o sol invadinho o apê, era hora de irmos embora e deixar o Marquinhos sozinho com as pontas de cigarros, as garrafas de cerveja e de vinho vazias, livros abertos, discos em volta do som, palavras suspensar no ar, pensamos cravados nas paredes, e análises bêbadas pendendo do teto...
Eram bons tempos...

06/07/2009

Da Arte de Morrer

Há uma semana não comia. Não porque não sentisse fome, pois seu estômago doía. Mas saciada por saciada, preferia estar cheia de nada. Também não queria ninguém tendo que ajudá-la no momento de ir ao banheiro. Nunca tinha precisado da ajuda de ninguém. Há tempos tinha deixado de ser um bebê prá precisar de ajuda no banheiro.
Há uma semana ficava admirando o nada. O olhar ora perdido nas marcas e rachaduras da parede, ora fixo no Cristo crucificado. Quais eram seus pensamentos? Quais eram suas vontades? O que almejava alguém com quase 80 anos?
Há uma semana deixou de se olhar no espelho. Após o derrame que paralisou metade do seu rosto, não quis mais ver refletido alguém que não era ela. Não sorria mais. Não havia razão, não havia motivos e principalmente não havia vontade.
Há uma semana não levantava mais da cama. As dores nas pernas, e os joelhos fracos deixaram-na como um paralítico. Se recusava a sentar numa cadeira de rodas. Ela, que nunca necessitou de ninguém, não poderia se deixar ser levada, empurrada numa cadeira de rodas.
Há uma semana sentia o mesmo desejo: o de dormir. Dormir. Apenas.

A simulação real do universo imaginário e presente

  Era um poeta dos sonhos e um pintor das reflexões mais profundas. Sua mente transbordava de ideias surreais, mergulhadas em um mar de dúvi...