18/03/2020

A dor que sente

Ela não sabia mais se sentia dores ou se as dores a sentiam. Não se lembrava da última vez que esteve em estado diferente do atual ou se tudo sempre foi assim. Suas lembranças eram verdadeiras incógnitas, assim como ela própria se sentia na sua relação com o mundo e do mundo com ela.
Era o avesso invertido do avesso, enroscada em pensamentos insistentes, ideias mancas e vontades lavadas de sangue. Quem a via, não a enxergava, e pela multidão ela passava solitária. Quem consegue ser sozinho no meio de tanta gente e ainda sorrir? Exercita a musculatura: sobe uma bochecha, sobe a outra bochecha e taí o sorriso. Ela não esquece de apertar os olhinhos, pois aí não vão dizer que seu sorriso é "amarelo" já que seus olhos estão sorrindo juntos.
Diplomacia com os outros é como engolir pedras: a saliva fica grossa, mas ela não cospe na cara da gentil pessoa que vomita frases prontas embaladas com papel decorado e laço lilás, ah não. Ela aceita cada um desses presentes, e pela diplomacia engole a saliva grossa feito pedra, que desce como gilete pela sua garganta, que além de levar o gosto de sangue a sua boca, aperta suas cordas vocais, e estrangula aquela voz de raiva pronta pra sair e que fica presa, pendurada nos dentes, e que ali morre.
Ela não sabia mais se sentia dores ou se as dores a sentiam. E seguiu sendo uma perdida numa multidão de outros uns, de outros outros.


Texto: Diego Lana
Arte: Daniela Nunes

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