13/12/2013

Troca de turno



Ele era importante. Era o mais importante de todo hospital, afinal, ele largou o conforto do próprio lar para atender o "bando de doentes" que aguardavam com suas "supostas doenças". "Esse povo que sente a garganta arranhar e vê no Google que é câncer deveria sumir do mapa" pensava o tempo todo. Ele era importante demais pra dar bom dia pro "zé povinho."  

Ela passou a noite em claro. Estava com fome, nem tinha conseguido jantar tamanha era a dor que sentia ao engolir qualquer coisa que fosse. Além da dor havia a preocupação com o trabalho, pois não podia faltar de jeito algum. "Tanta coisa pra fazer, tanta coisa pra terminar" pensava o tempo todo. Mas não tinha jeito, ela precisava estar ali, precisava ver o médico para depois ir trabalhar. 

A atendente estava ansiosa e radiante. Era sexta feira, e para ela o fim de semana começa ao final do expediente de sexta. Era sortuda, pois era a mais velha no departamento ("tempo de casa, hein? Não de idade", dizia ela), e podia se dar ao luxo de descansar aos fins de semana. Não respondia aos bons-dias dos pacientes que chegavam, apenas os olhava de maneira mecânica, como se o espírito do aclamado "findesemanaperfeitolindoemaravilhoso" tivesse possuído seu corpo e a levado para uma dimensão paralela. 

Ele já tinha certa idade, mas estava acompanhado pela filha. "Lutei e trabalhei a vida toda pra ter uma velhice digna, com um bom plano de saúde", dizia para todos. Os filhos estavam encaminhados e com boas condições de vida. A filha com olhos de carranca e voz de torcedor de futebol em final de partida, cuidava do pai como se cuida de um pano de chão. "Agora o senhor quer ir no banheiro, né? Por que não foi quando chegamos. Eu não sou obrigada a ficar fazendo suas vontades o tempo todo".  

"Senhora Mitsuco Hishira"
...
"Senhora Mitsuco Hishira!"
...
"SENHORA MITSUCO HISHIRA!"
...
"Senhor João Damasceno"
"Oi, Doutor."
"Onde está o Sr. João?"
"Não sei. Eu sou Mitsuco" disse a moça após desligar o celular. "Sou viciada nesse joguinho", disse com um sorriso amarelo. 

Mitsuco estava sempre doente. Não havia uma doença que ela já não tivesse tido ou que alguém da sua família não tivesse tido. Caxumba? Já teve duas vezes, "a primeira foi tão fraca que meu organismo não ficou imune. Mas a segunda..."  Já tinha experimentado remédios das mais variadas marcas e laboratórios, "Não que eu não acredite em genéricos, mas os de laboratórios conhecidos são os melhores". 

A criança corria e pulava por cima dos bancos. Atrás, uma criança aparentemente da mesma idade corria freneticamente atrás da primeira. Eram gritos, risos, um contentamento só em meio aos doentes e moribundos. De longe, uma mãe apática assistia a tudo com um olhar vazio. Tinha acordado 4:00 da manhã para enfrentar o ônibus lotado para, enfim, chegar ao hospital para a consulta das 7:30. A garganta vacilava sempre desde que virou mãe. A voz de comando em casa pertencia à televisão. O relógio marcava 9:50, e o médico não tinha chegado ainda. 

O médico atrasado para consulta das 7:30 estava no conforto do seu carro novo, a caminho do hospital. Ele, que salva muitas vidas, pode se dar ao luxo de chegar atrasado. Ele tem créditos com Deus, e pressente quando o hospital realmente precisa dele, e naquele dia, logo uma sexta feira, tinha certeza que o hospital estaria vazio, e que muitos pacientes iriam faltar à consulta. Os que porventura comparecessem, poderiam aguardar um pouco sua chegada. Se puderam esperar até o dia da consulta, por que não esperar mais algum tempinho? Ele tinha crédito com Deus. Ele podia fazer doentes esperarem. 

E o dia no hospital passou. 

O médico importante atendeu o Zé Povinho como ele não gostaria de ser atendido. Dias depois, uma das pacientes daquele dia, tratada com Anador, descobriu um tumor na garganta. 

A moça preocupada com o trabalho foi afastada por 5 dias, e quando retornou ficou doente novamente. 

A atendente feliz "largou o serviço" 5 minutos antes pra passar o batom e trocar de calcinha no banheiro do hospital.

O velho senhor morreu sentado na cadeira de rodas, e a filha só percebeu 2 horas depois, quando brigou com o pai por ele dormir demais. O pai simplesmente não acordou mais. 

Mitsuco perdeu o celular e a consulta. Passou o resto do dia no hospital tentando recuperar o aparelho. 

A mãe e as crianças enfrentaram um árduo caminho de volta pra casa. Ônibus cheio, vida vazia. 

O médico que tinha crédito com Deus sofreu um ataque cardíaco, e quando achou que poderia resgatar seus créditos com Deus, soube que era um devedor. 

"Aguarde um instante pois estamos trocando de turno."  

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